domingo, 26 de outubro de 2008

Direito Penal - Considerações críticas quanto a aplicação do direito penal na "praxis"

Direito Penal
Considerações críticas quanto a aplicação do direito penal na "praxis"
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Vivemos hoje em um mundo caracterizado por diversos conflitos sociais, em que as pessoas não necessitam apenas saciar sua fome e sim, saciar os prazeres impostos pela sociedade e pela mídia, o que, como sabido, gera insatisfações demasiadas e cada vez mais inconformismo e violência. Vivemos hoje, porfio, no mundo do “eu tenho”.
Uma vez aprendi que o direito penal deveria ser utilizado como a última “ratio”, como a última medida a ser aplicada quando outra não fosse suficientemente capaz de frear aquele mal.
Aprendi também que as prisões, sejam elas penas ou meramente processuais, não deveriam ser aplicadas para servir de exemplo e nem para atender o clamor público, e sim na medida do legal, do justo.
Ressalto, ainda, que o indiciado só seria apenado após o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória transitada em julgado, na medida de sua culpa (pois aí sim seria considerado culpado – restando provado o fato típico, antijurídico e culpável).
Porém, de trágica sorte, necessário se faz dizer que tal fato tem se mostrado puramente ilusório, sendo certo que em nada condiz com a realidade ora vista.
Vivemos hoje em uma sociedade que prega a ressocialização do preso que vive com mais vinte em uma cela em que só cabem 10 presos, ou menos. Ora, ao defender a ressocialização parece que uma venda é posto aos nossos olhos impedindo-nos de enxergar a realidade que grita aos nossos ouvidos suplicando que retiremos as vendas.
Ressocialização esta, onde os presos – e não condenados, tendo em vista que muitos deles permanecem presos por anos sem que haja uma condenação – têm que revezar-se para poder realizar coisas simples e comuns, como dormir.
Parece-me mais discrepante ainda, o fato de que com tamanha falta de estabelecimentos prisionais adequados pede-se ainda mais criminalização com duras penas.
Podemos trazer a baila, inúmeras outras questões, como as já deflagradas, de apesar do que sai dos cofres públicos com cada preso este, ainda sim, receber comida estragada, ou em saquinhos plásticos, como pudemos observar não só uma mais em um plural de vezes.
Pasmo em pensar no dia futuro que parece-me cada vez mais incerto, com tamanho menoscabo de tantos.
Digo isto porque vejo um sistema sendo levado pela vontade de grande parcela da população que, além de muito mal informada e desprovida de conhecimento jurídico, é ainda constantemente influenciada pela mídia.
Encaixa-se perfeitamente, no caso em tela, a questão da “menina Isabela”, que se mostra abundantemente levado pela mídia por um procedimento especial, diverso daquele que pode ser encontrado em nossos tribunais, tendo sido tais processos nomeados brilhantemente pelo ínclito jurisconsulto Luiz Flávio Gomes de processos “midiáticos”.
Da mesma forma foi o caso Daniela Perez, quando de forma absurdamente apressada e com o intuito de saciar a vontade do povo, criou-se nova lei que de má sorte, inaplicável, posto que incompatível com nosso sistema atual.
De mesma forma, é o que possivelmente ocorrerá no caso já “midiaticamente condenado” Lindemberg, recentemente visto em São Paulo, e em tantos outros mais.
Indubitavelmente tal desordem pode nos levar ao caos.
Ademais, quando finalmente encontra-se uma medida capaz de penalizar o agente de uma forma que possibilite sua recuperação e ao mesmo tempo desafogando os corredores prisionais, temos a revolta do povo que se limita a ver pena alternativa como sinônimo de “réu não punido”.
Ao mesmo passo, temos grandes incentivos da população no que tange a pena de morte ou trabalhos forçados – como aqueles que vemos em filmes nos quais uma bola de ferro era amarrada aos pés do condenado enquanto tinha seu trabalho vigiado e realizado embaixo de açoites – e, o mais atemorizante e irresponsável, que é a fundamentação de tais medidas como forma de “amedrontar”, utilizando, mais uma vez, a pena aplicada a um como exemplo a outros.
Ora, como já dizia Cesare Beccaria, de que valem duras penas se não forem elas aplicadas a todos?
Já é ora de pensarmos a respeito deste assunto sem vendas, antes que as prisões sejam necessárias à quem de bem, por falta de espaço para uma saudável convivência.
A violência e o inconformismo serão diminuídos em sua imensa maioria quando o governo propiciar ao seu povo uma condição de vida digna, uma educação decente, saúde a todos. E isso só acontecerá no dia em que o povo perceber que detém o poder de escolher seus governantes e de exigir deles atitudes, promessas cumpridas, responsabilidade, por não serem nada mais funcionários do povo, já que vivemos em um Estado Democrático de Direito.
Enquanto tal fato não se torna realidade, não podemos complicar ainda mais a situação, defendendo penas excessivas, contrariando princípios penais e constitucionais, proporcionando prisões irregulares, condenações antecipadas, e tanto mais.
Nesse sentido, pertinente é colacionar a seguinte lição: “Enquanto existir, por efeito das leis e dos costumes, uma organização social, que produza infernos artificiais no seio da civilização e, desvirtue com uma fatalidade humana o destino, que é inteiramente divinal; enquanto os três problemas do século – a degradação do homem pelo proletariado – a perdição da mulher pela fome – a atrofia da crença pelas trevas – não forem resolvidos; enquanto em certas regiões for coisa possível a asfixia social; ou, noutros termos, e sob aspecto mais amplo – enquanto houver na terra ignorância e miséria, não serão os livros como este, de certo, inúteis”(Prefácio de “Os Miseráveis”, de Victor HUGO, H. Antunes & Cia Livraria Editora, Rio de Janeiro. Obra editada no ano de 1923 pela Livraria Renascença, Lisboa, Portugal).
Quando cultivamos a maldade só podemos colher a maldade.
Não seria mais fácil aprisionar o realmente condenado, por um processo que obedeceu a forma legal e aos princípios como do contraditório e ampla defesa? De mesma valia não seria aplicar a prisão pelo tempo justo (estipulado por sentença irrecorrível e obedecendo a garantia da progressão de regimes)? Ou vamos ficar esperando vagas para homicidas nas prisões super lotadas de ladrões de galinhas?
Em suma, a pena não deve ser usada como castigo e sim como meio para que não se repita tal conduta. E, de uma vez por todas, a pena, por mais dura e severa que seja, não desfaz o que já foi feito.

Marcia de Oliveira Souza
Outubro/ 2008

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Processos midiáticos, prisões imediáticas

Caso Isabella.
Processos midiáticos, prisões "imediáticas"
Elaborado em 05.2008.


Luiz Flávio Gomes
doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Instituto Panamericano de Política Criminal (IPAN), consultor, parecerista, fundador e presidente da Cursos Luiz Flávio Gomes (LFG) - primeira rede de ensino telepresencial do Brasil e da América Latina, líder mundial em cursos preparatórios telepresenciais


O caso Isabella, em virtude da imensa repercussão que ganhou na mí7dia e na população em geral, deve ser classificado (evidentemente) como um caso midiático. Os casos midiáticos, desgraçada e normalmente, seguem o chamado "processo midiático", que conta com "regras" próprias, distintas das típicas do processo penal do Estado constitucional de Direito. O caso midiático, de outro lado, transforma-se naturalmente na mais atrativa novela do país. O capítulo de hoje versa sobre a prisão preventiva.
O processo midiático (conduzido pela mídia) caracteriza-se, em primeiro lugar e desde logo, pelo imediatismo (assumido pelos órgãos estatais persecutórios, em razão do clamor público e da pressão midiática). Em outras palavras: é um processo midiático e "imediático".
Regra básica: o tempo do processo midiático não é o mesmo do processo penal descrito nas leis vigentes no país.
Nos processos comuns (normais) tudo é lento: a investigação é lenta, os laudos demoram meses, não existe pressão da mídia, ninguém presta esclarecimentos públicos etc. Nos processos midiáticos, ao contrário, por serem regidos pelo inconsciente coletivo vingativo, pretende-se que tudo seja imediato: a colheita das provas, a confissão dos suspeitos, a elaboração dos laudos, as declarações da polícia e do ministério público, a prisão temporária, a preventiva etc.
O julgamento popular e midiático também é imediato, sem demora. É um julgamento cheio de "certezas" peremptórias. O "eu acho" transforma-se prontamente em convicções inabaláveis Na era medieval (como nos demonstrou Foucault) o corpo do suspeito era sacrificado em praça pública (para servir de exemplo às demais pessoas). No processo penal midiático a execração pública é rápida e urbi et orbi (na cidade e no mundo). O suspeito pode ser inocente ou culpado (isso é irrelevante): ele sempre é execrado.
Nos processos midiáticos as prisões devem ser imediatas. A polícia e o ministério público, em regra, incorporam nas suas atividades as pressões midiáticas e populares. Postulam prontamente a prisão temporária, ainda que desnecessária. Reivindicam a prisão preventiva, embora não haja base legal.
No caso Isabella a prisão temporária foi decretada pelo juiz "imediaticamente". Ele seguiu, naquele momento, o indevido processo midiático. Um Desembargador (Canguçu de Almeida) cassou-a, com base no devido processo legal vigente. Como se vê, as "normas" do indevido processo penal midiático não se ajustam às regras do devido processo legal do Estado constitucional de Direito.
No capítulo de hoje a novela do "Caso Isabella" versa sobre a prisão preventiva, postulada pela polícia e (ainda não oficialmente, mas oficiosamente) também pelo ministério público. Polícia e Ministério Público, nos processos midiáticos, normalmente jogam para a torcida, ou seja, para o clamor público. Isso explica o seguinte: nenhum dos requisitos legais previstos no art. 312 do CPP (garantia da ordem pública ou econômica, preservação probatória ou garantia de cumprimento da lei penal) está presente. Mas a prisão é pedida assim mesmo, com ou sem base legal. Afinal, estamos falando de um processo midiático, assumido pelos órgãos oficiais em decorrência do clamor público e da pressão midiática.
Resta saber qual será a postura que o juiz vai adotar. Existem duas: aplicar o Direito penal do cidadão (que é regido pelo devido processo legal) ou, contrariamente, o Direito penal do inimigo, defendido pelo penalista alemão Jakobs (que significa conferir a determinados suspeitos ou acusados um tratamento discriminatório e diferenciado). De acordo com a lógica do primeiro, não haverá prisão preventiva. Consoante as "regras" do segundo, decretar-se-á a prisão preventiva (que será, posterior e seguramente, revogada pelo Tribunal).
Recorde-se: clamor público, gravidade da infração penal hedionda etc. são motivos (apenas) midiáticos para a decretação da prisão preventiva. Não estão previstos na lei nem são aceitos pelo STF. Fazem parte do indevido processo penal midiático, do "Código penal" midiático, não do devido processo legal.
Conclusão: pelo direito vigente (construído sobretudo pelo STF a partir do texto legal) não cabe, por ora, prisão preventiva no caso Isabella. Em qualquer momento, entretanto, desde que haja motivo fático certo, ela pode ser decretada. Por ora a mídia não divulgou nenhuma razão concreta para isso.
Se observado o Direito penal do cidadão não haverá prisão preventiva. Mais de 80% dos acusados de crimes hediondos estão soltos (respondem ao processo em liberdade). Se seguidos o processo penal midiático e o Direito penal do inimigo, teremos a prisão preventiva. Aguardemos, mas sempre desconfiando do "Vox populi, vox Dei". Nem sempre a voz do povo ou a voz da mídia é a voz do devido processo legal. Clamor popular, comoção social, pressão midiática... hummmmm, cuidado!

Informações bibliográficas:Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:GOMES, Luiz Flávio. Caso Isabella. Processos midiáticos, prisões "imediáticas". Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1774, 10 maio 2008. Disponível em: . Acesso em: 23 out. 2008.