quinta-feira, 23 de julho de 2009

Lesão corporal leve na Lei Maria da Penha e Ação Penal

A ação penal consiste no direito público subjetivo de pedir ao Estado-juiz a aplicação do direito penal objetivo a um caso concreto. Seu fundamento constitucional encontra-se no art. 5º, XXXV da nossa Constituição, que dispõe: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito". Nesta senda, ante o princípio da inércia da jurisdição, resta ao interessado, através do exercício do direito de ação, provocar a jurisdição no intuito de obter o provimento jurisdicional adequado à solução do litígio.

No tocante à titularidade, a ação penal pode ser classificada em ação penal pública e ação penal privada. A ação penal pública, cujo titular privativo é o Ministério Público, pode ser pública incondicionada e pública condicionada. Já a ação penal privada é titularizada pelo ofendido ou por seu representante legal.

Ação penal pública incondicionada é aquela cuja propositura independe da vontade da vítima ou de seu representante legal, estando o Ministério Público autorizado a intentá-la sem qualquer provocação se houver prova suficiente de materialidade e indícios de autoria. É inaugurada para apuração de infrações penais que interferem diretamente no interesse geral da sociedade. Ela constitui regra em nosso ordenamento jurídico, somente excetuada quando a lei penal, expressamente, estabelecer outra forma de se proceder. Assim, o membro do Ministério Público atuará incondicionalmente, sem a necessidade de autorização ou manifestação de vontade de quem quer que seja.

Por outro lado, a ação penal pública condicionada, também titularizada pelo Ministério Público, necessita de uma permissão da vítima ou representante legal para ser intentada. Há ofensa da vítima em sua intimidade e o legislador optou por condicioná-la à representação do ofendido ou seu representante legal ou à requisição do Ministro da Justiça em determinados crimes. Devido a implicações na esfera de interesses da vítima, seu desencadeamento dependerá, sempre, da manifestação de vontade do ofendido ou de quem legalmente o represente, no sentido de querer ver apurada a infração penal.
A representação é a manifestação de vontade da vítima ou de seu representante legal no sentido de autorizar o desencadeamento da persecução penal em juízo. É um pedido autorizador feito pela vítima ou por seu representante legal. Sem ela a persecução penal não se inicia. Não pode haver a propositura da ação.
Esta autorização (representação) deve ser ofertada no prazo de seis meses do conhecimento da autoria da infração penal, isto é, de quando a vítima toma ciência de quem foi o autor do crime. Insta ressaltar que este prazo é de natureza decadencial, contado na forma do art. 10 do Código Penal, incluindo-se o dia do início e excluindo-se o do vencimento, não havendo prorrogação deste prazo, mesmo que se encerre em final de semana ou feriado.
Tema peculiar é o da retratação da representação. Enquanto não oferecida a denúncia, a vítima pode retratar-se da representação, inibindo o início do processo. Assim, como a representação está adstrita à conveniência do ofendido, uma vez apresentada, é possível que ele se arrependa, volte atrás. Logo, a representação será irretratável após o oferecimento da denúncia, nos termos do art. 25 do CPP.
Já a Lei Maria da Penha, lei nº. 11.340/2006, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, prevê, em seu art. 16, que só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
A lei nº. 11.340/06 entrou em vigor em 22 de setembro de 2006, com o objetivo de fornecer instrumentos eficazes no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher.
Esclarece o art. 41 da Lei Maria da Penha que aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher não se aplica a Lei 9099/95, independentemente da quantidade e natureza da pena prevista no tipo penal incriminador.
Com efeito, no procedimento de apuração desta ordem de infrações, não será possível a lavratura de termo circunstanciado e tampouco da incidência da transação penal, suspensão condicional do processo e composição civil dos danos como forma de conduzir à extinção da punibilidade.
Nesse sentido, como ficaria a ação penal referente ao crime de lesão corporal de natureza leve?
Seria pública incondicionada por não se aplicar a disposição da Lei 9009/95, ou seria pública condicionada à representação, conforme as regras previstas principalmente no art. 16 da Lei Maria da Penha quanto à retratação da representação?
Primeiramente, é importante salientar que a jurisprudência tem se orientado por duas posições. Nossos tribunais vêm se adotando posições antagônicas não chegando, até o momento, num consenso pacífico. Como é cediço, o assunto é polêmico e preocupante.
Parte da doutrina e jurisprudência entende que a lesão corporal leve, para efeitos de violência doméstica e familiar, prescinde de representação, já que se trata esta formalidade de previsão inserida no art. 88 da Lei 9099/95, diploma este inaplicável aos crimes da Lei Maria da Penha.
Tanto que a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça em importante decisão no HC 106.805-MS, em 03 de fevereiro de 2009, aplicou o entendimento de que, em se tratando de lesões corporais leves e culposas praticadas no âmbito familiar contra a mulher, a ação é, necessariamente, pública incondicionada. A Relatora Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG) explicou que, "em nome da proteção à família, preconizada na Constituição Federal, e em frente ao disposto no art. 88 da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que afasta expressamente a aplicação da Lei n. 9.099/1995, os institutos despenalizadores e as medidas mais benéficas previstos nesta última lei não se aplicam aos casos de violência doméstica e independem de representação da vítima para a propositura da ação penal pelo MP nos casos de lesão corporal leve ou culposa. Ademais, a nova redação do § 9º do art. 129 do CP, feita pelo art. 44 da Lei n. 11.340/2006, impondo a pena máxima de três anos à lesão corporal qualificada praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos juizados especiais e, por mais um motivo, afasta a exigência de representação da vítima. Concluiu que, nessas condições de procedibilidade da ação, compete ao MP, titular da ação penal, promovê-la. Sendo assim, despicienda, também, qualquer discussão da necessidade de designação de audiência para ratificação da representação".
No entanto, a mesma Turma do Tribunal da Cidadania, em 05 de março de 2009, no julgamento do HC 113.608-MG, tendo como relator o Ministro Celso Limongi (Desembargador Convocado do TJ-SP), mudou o entendimento quanto à representação prevista no art. 16 da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Considerou que, "se a vítima só pode retratar-se da representação perante o juiz, a ação penal é condicionada. Ademais, a dispensa de representação significa que a ação penal teria prosseguimento e impediria a reconciliação de muitos casais".
Diante do exposto, verifica-se, portanto, que o entendimento é divergente quanto ao tema em discussão e a questão mostra-se bastante controvertida dentro da própria Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça. Primeiramente aplicou-se o entendimento que para o crime de lesão corporal de natureza leve no âmbito das disposições da Lei Maria da Penha seria cabível a ação penal pública incondicionada. Posteriormente, o referido entendimento foi modificado, esclarecendo que para tais casos a ação penal é condicionada à representação da vítima.
Como é cediço, o assunto é polêmico e preocupante. A posição adotada pode interferir diretamente no convívio familiar refém da violência doméstica. Vamos aguardar um posicionamento e entendimento pacífico dos nossos Tribunais, decidindo com esmero e que possam coadunar suas decisões, mantendo-se, sempre, a finalidade e o objetivo da Lei Maria da Penha, criada para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Como citar este artigo: GARCIA, Luis Gustavo Negri. Lesão corporal leve na Lei Maria da Penha e Ação Penal. Disponível em http://www.lfg.com.br. 28 de junho de 2009.
Bibliografia
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2002.PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.HC 106.805-MS; 6ª Turma; Rel. Desemb. convocada do TJ-MG Jane Silva; julgado em 03/02/2009;HC 113.608-MG; 6ª Turma; Rel. Desemb. convocado do TJ-SP Celso Limongi; julgado em 05/03/2009;CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados especiais criminais: comentários, jurisprudência, legislação. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2002.AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. 1ª ed, São Paulo: Editora Método, 2009.