terça-feira, 25 de maio de 2010

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRÁFICO DE PESSOAS

Um dos grandes desafios com que se depara a sociedade atual consiste no combate às atividades perpetradas por organizações criminosas, cujos tentáculos se estendem além dos limites territoriais estaduais ou nacionais.
O perigo difundido por tais práticas ilícitas é uma grande célula cancerígena que se dissipa difusamente pelo tecido social, acarretando efeitos nefastos, devastadores, para a manutenção da ordem social, da estabilidade da estrutura democrática, da organização familiar e coloca em risco a vida, a saúde física e psicológica, a segurança, de um número indeterminado de pessoas.
Nesse contexto, assume especial relevo o combate ao tráfico de pessoas.
O art. 3º do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças (promulgado pelo Decreto n. 5017, de 12/03/2004), ao tratar do delito de tráfico de pessoas, o define como: "o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos” (grifo nosso)1.
Note-se que o tráfico de crianças e adolescentes, ao lado do tráfico de mulheres, para fins de exploração sexual, é uma das modalidades que mais tem crescido nos últimos tempos, conduzindo, inclusive, o legislador a instituir pela Lei Federal nº 9.970/ 2000, o dia 18 de maio como o “Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes”, data esta que tem desencadeado atos de mobilização social e política no intuito de promover a conscientização da população sobre a gravidade do tema.
1 Na legislação penal pátria diversos dispositivos legais, em harmonia, com o aludido documento internacional, tipificam de alguma forma a matéria: CP, arts. 149, §1º, inciso I e II; 198; 203, §1º, incisos I e II; 204; 206; 207, caput e §1º; 231 e 231-A, com a redação determinada pela Lei n. 12.015/2009; 245; Lei n. 6.815/80, art. 125; Lei n. 8.069/90, arts. 238 e 239; Lei n. 9.434/97, art. 14 e seguintes.
Nesse contexto, pode-se afirmar que crime de tráfico de pessoas é, atualmente, uma das formas mais graves de violação aos direitos humanos. As vítimas, geralmente, de baixa renda, via de regra, são ludibriadas, seduzidas por promessas de trabalho lícito e moral, em território estrangeiro ou nacional, mas chegando ao seu destino, transmudam-se em verdadeiro objeto de exploração sexual, escravidão, sujeitando-se a condições desumanas, degradantes.
O ser humano, no caso, é transformado em objeto, em algo passível de ser comercializado ou apropriado para satisfação dos interesses alheios e as mínimas condições condignas de existência são violentamente proscritas, menoscabadas, trazendo marcas indeléveis para a sua personalidade.
Por força da grande lucratividade e o baixo risco da atividade desenvolvida, traficar pessoas acaba sendo muito mais vantajoso para as organizações criminosas do que o tráfico de armas e drogas. Sem dúvida, é muito mais fácil a apreensão de um artefato ou substância entorpecente ilegal, do que a identificação do transporte ilícito de uma pessoa para fins de exploração, até porque o consentimento destas, muitas vezes, é obtido mediante fraude, como por exemplo, a realização de casamento com o aliciador estrangeiro, camuflando, portanto, o delito, o que dificulta sobremaneira a sua descoberta a tempo. Além do que, a mesma pessoa, ao contrário de uma arma ou droga, pode ser usada repetidamente, durante longo prazo, gerando lucros contínuos.
Em razão disso, o tráfico de pessoas, ao lado do tráfico de armas e de drogas, constitui uma das atividades criminosas mais lucrativas, chegando a movimentar mais de US$ 12 bilhões ao ano.
Diante desse assustador panorama, emerge a necessidade de alertar e mobilizar a sociedade e todos os órgãos públicos no sentido de combater prática tão execrável, que, além de servir de sustentáculo para as organizações criminosas, coloca em perigo bens jurídicos de importância vital para o Estado Democrático de Direito, posto que constitui uma das formas mais graves de violação aos direitos humanos.

Autor: Fernando Capez

sexta-feira, 7 de maio de 2010

As palavras que não escreví...

Advocacia agredida*

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira**

Há poucos dias, assistimos estarrecidos à violência cometida contra o advogado Roberto Podval, defensor do casal Nardoni. Com destemor, competência e altivez ele exerceu o sagrado direito de defesa, em nome de acusados que já estavam condenados pela mídia e pela opinião pública. Foi alvo de agressão física e de inúmeras outras de natureza moral, que não o alcançaram por ser ele portador de inatingível dignidade pessoal.

A incompreensão histórica que nos acompanha, e que agora recrudesceu, faz com que os advogados sejam vistos como cúmplices do cliente.

Consideram-nos advogados do crime, e não porta-vozes dos direitos constitucionais e processuais do acusado, que, diga-se, são direitos e garantias de todos e de cada qual.

Portanto, violados quaisquer deles num caso concreto, mesmo se tratando de acusado notoriamente culpado, a próxima violação poderá atingir qualquer cidadão, ainda que inocente. Vale repetir à exaustão: nós, advogados, não somos defensores do crime, defendemos a obediência aos direitos e às garantias individuais.

Na atualidade o desprestígio da advocacia atingiu níveis inimagináveis. Pode-se afirmar a ocorrência de algo inédito em nosso país: a advocacia está sendo hostilizada.

Um Estado repressor e policialesco em franca formação, de um lado, e, de outro, uma mídia sedenta de escândalo e tragédia, especializada na teatralização do crime, têm contribuído para a construção de uma imagem negativa da advocacia e, o que é mais grave, têm contribuído para apequenar o próprio direito de defesa. Passou ele a ser considerado como desnecessário, inconveniente, instrumento de chicanas e de ganho para os advogados.

É estranho que a advocacia esteja sendo criticada em aspectos absolutamente comuns a outras profissões, que, no entanto, ficam impunes.

Fala-se que os pobres não podem contratar bons advogados por não poderem pagar os honorários, ficando carentes de assistência jurídica. Admitindo-se como correta a afirmação, também é correto dizer que os pobres são carentes de boa saúde, de adequada educação e de habitação digna. A culpa não é dos advogados, dos médicos ou dos engenheiros, mas sim da trágica desigualdade social que reina no País. Note-se que, no caso da advocacia, os carentes de recursos são assistidos ou pelos não poucos advogados que lhes atendem gratuitamente, ou pelos que, conveniados pelo Estado, lhes prestam assistência e recebem irrisórios honorários do Estado, ou ainda pelos competentes e dedicados defensores públicos.

Verbera-se, ainda, que advogados cobram honorários elevados. Trata-se de uma assertiva que, se verdadeira, não pode ser generalizada, pois a maioria esmagadora dos profissionais (200 mil só em São Paulo) enfrenta grandes dificuldades no mercado de trabalho. De qualquer forma, ela causa espécie. A contratação de honorários é ato bilateral - há quem cobre e há quem aceite e pague. Qual o motivo de estranheza ou de crítica? Para uma sociedade que supervaloriza o ganhar e o ter, em detrimento do ser, tal observação é ridícula, para não dizer hipócrita. Podem ganhar os jogadores de futebol, os artistas, os grandes médicos, cirurgiões plásticos, os arquitetos e decoradores, os empresários, os banqueiros, os jornalistas e apresentadores de TV, etc., etc. No entanto, dos advogados se parece querer exigir trabalho não remunerado.

Antes mesmo de o Estado se organizar tal como o conhecemos hoje havia aqueles que "eram chamados" para emprestar a sua voz - os chamados "boqueiros" - em prol dos que careciam de defesa. É verdade o que se diz: o primeiro advogado foi o primeiro homem que com a sua palavra defendeu um semelhante contra uma injustiça. Sempre fomos e seremos os "boqueiros" daqueles que não têm voz e não têm vez.

Qualquer cidadão, inocente ou culpado, ou titular de uma pretensão, procedente ou improcedente, tem o direito de recorrer ao Poder Judiciário para se defender e para deduzir a sua postulação. E nós, advogados, somos os agentes do exercício desses direitos perante quaisquer juízos e tribunais, pois exercemos com exclusividade a chamada capacidade postulatória. Somente nós, advogados, temos o poder de movimentar o Judiciário, que é originariamente inerte. No juízo criminal exercemos o direito de defesa, sem o qual o processo nem sequer pode ser instaurado. Somos, pois, o elo entre o povo e a Justiça.

A propósito da defesa no processo penal, mesmo os mais furiosos adeptos de punição contra os acusados deveriam respeitar e defender o direito de defesa, pois sem ele os seus instintos sanguinários nunca poderiam ser satisfeitos, a não ser pela vingança privada.

Nos momentos de ruptura institucional ou de obscurantismo social, os advogados sempre foram desrespeitados e agredidos. Napoleão Bonaparte desejou cortar a língua dos advogados. Durante a Revolução Francesa, Robespierre e o promotor Fouquier-Tinville impediram a atuação dos advogados na defesa dos acusados. Em menos de uma semana houve mais de mil condenações e decapitações. E, durante a Revolução, Malesherbes e Nicolas Barrier foram guilhotinados por exercerem a defesa.

A história recente do Brasil registra a heroica epopeia dos advogados que se opuseram com rara coragem e desprendimento às ditaduras getulista e militar.

Não estamos vivendo hoje um período de ruptura institucional, mas atravessamos triste período de verdadeiro obscurantismo, representado por uma cultura repressiva que se instalou no seio da sociedade e que reflete a intolerância raivosa, a insensatez, o ódio e o desejo de expiação e de vingança. Tais sentimentos não raras vezes atingem a advocacia.

Embora o caminhar seja árduo, e sempre o foi, continuaremos a seguir a nossa saga. Continuaremos a exercer o nosso glorioso ministério de postular pelo direito e pelo justo em nome de terceiros, em benefício da cidadania e da democracia.